quarta-feira, 31 de julho de 2013

Atlas de ilhas distantes


Numa passagem rápida por uma livraria, com o P. a dormir no carrinho de bebé, encontrei um livro com um título e um subtítulo muito sugestivos: Atlas of Remote Islands: Fifty Islands I Have Not Visited and Never Will. Uma nota biográfica refere que a autora cresceu no lado errado do Muro de Berlim e, impedida de viajar, conheceu o mundo através de atlas geográficos de uma biblioteca familiar. O livro descreve em pormenor as características de ilhas longínquas, muitas delas desabitadas, áridas, batidas por ventos polares, baptizadas com os estados de espírito dos marinheiros que primeiro as encontraram: decepção, possessão, antípodas, solidão. O livro começa precisamente com essa última ilha solitária do Árctico, Lonely Island. Não sei como acaba, porque entretanto o P. acordou.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Esternocleidomastóideo


Para o Armando, naturalmente.

Banda sonora para uma remodelação governamental


Peter, Paul and Mary, Where have all the flowers gone. A escolha da canção é pouco importante. Ainda hesitei entre opções mais positivas (Don't think twice, it's all right) e mais negativas (Too much of nothing).

segunda-feira, 29 de julho de 2013

London, London 2

Um dia, quando vinha a sair de uma reunião num ministério britânico - desconfortável de fato e gravata, como sempre - um grupo de três turistas asiáticas com conhecimentos muito rudimentares da língua inglesa aproximou-se de mim apontando para uma máquina fotográfica. De forma simpática, acedi logo a tirar-lhes uma foto de grupo. No entanto, o que elas pretendiam - tentaram explicar-me enquanto eu estendia o braço para a máquina - era tirar uma fotografia comigo. Embora sem perceber muito bem o que estava a acontecer, concordei. Tenho a sensação de que ficarei para sempre no álbum de férias das simpáticas turistas catalogado como «um verdadeiro inglês», provavelmente na página seguinte a fotos com poses semelhantes tiradas ao lado de um dos tradicionais elementos da guarda de Buckingham ou da estátua de cera da Rainha.

London, London

No romance England, England, Julian Barnes imagina a transformação da ilha de Wight num gigantesco parque temático, construído com o objectivo de reproduzir a própria Inglaterra. Pagando o bilhete, os turistas podem visitar réplicas dos principais monumentos e ter acesso a alguns dos símbolos e ambientes que caracterizam a identidade nacional. Para os visitantes, a ideia de Inglaterra acaba por tornar-se mais real no parque, onde tudo é perfeito e os objectos são coincidentes com a imagem prévia com que partiram de casa, do que no próprio país.

Ao passar pela Abadia de Westminster, a caminho de uma reunião, e depois pelo Palácio de Buckingham, no regresso, navegando sempre por entre as correntes compactas de turistas, confirmei a ideia de que, longe do território da ficção, também a cidade de Londres tem vindo a transformar-se num parque temático de si própria, com membros da realeza aprisionados nas personagens que lhes criaram e a organização de eventos especiais quase todos os anos: casamento real, jogos olímpicos, bodas de diamante da rainha, nascimento real. Como me acontece com frequência, também aqui sou apenas mais um figurante, não remunerado e discreto, que caminha pelos parques de regresso ao trabalho.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Meninos de coro

Foi provavelmente a primeira vez que os Dead Combo actuaram numa igreja. A Round Chapel, em Hackney, estava cheia de fiéis na passada sexta-feira, para ouvir o som distorcido de guitarras e contrabaixo. Projectadas nas paredes e sobre o órgão de tubos, imagens difusas de rostos, figuras diabólicas e strippers a rodar em torno de varões.


segunda-feira, 3 de junho de 2013

On being sane in insane places

Em 1973, oito pessoas mentalmente sãs tentaram ser internadas em hospitais psiquiátricos, no âmbito de uma experiência científica preparada por David Rosenhan. Todos os pacientes acabaram por ter alta, mas só após um período relativamente prolongado de internamento e de terem concordado em continuar a tomar a medicação prescrita.

Durante a passagem pelas instituições, muitos dos comportamentos dos voluntários eram interpretados pelo pessoal clínico à luz da enfermidade diagnosticada. Alguns dos pacientes, por exemplo, tiravam regularmente notas sobre a experiência. Numa das fichas clínicas, alguém anotou: «Patient engages in writing behaviour» – um bem conhecido indício de insanidade.

Uma segunda experiência foi depois montada quando a direcção de um outro hospital, irritada com os resultados do estudo, desafiou a equipa de Rosenhan a enviar pacientes incógnitos para a sua própria instituição, de modo a poder confirmar a eficácia dos diagnósticos da sua equipa na distinção entre falsos e verdadeiros doentes. Com efeito, o pessoal médico foi capaz de identificar mais de quarenta fraudes entre os quase duzentos pacientes da instituição. Mas Rosenhan não tinha enviado qualquer voluntário incógnito.

A experiência é referida muitas vezes como exemplo dos limites fluidos entre os estados de sanidade e de insanidade. Mas mais do que os dados empíricos, gosto do título que foi dado ao estudo, On being sane in insane places, uma frase que me vem à cabeça com frequência no dia a dia, por vezes mesmo com os termos invertidos, acompanhada por uma pergunta: «quanto mais tempo até ter alta?»

quarta-feira, 13 de março de 2013

Percebi hoje que, devido à necessidade de conciliar os interesses de uma família alargada, aluguei dois filmes   muito diferentes, mas com títulos semelhantes: Tokyo Story (Yasujiro Ozu, 1953) e Toy Story (John Lasseter, 1995). Na verdade, ambas as histórias têm um tema comum: o medo de um calmo abandono por parte de quem já nos foi próximo, no contexto do processo natural de crescimento. O facto de o dilema de centrar em bonecos articulados ou em pais envelhecidos pode ser considerado um aspecto secundário.



domingo, 3 de fevereiro de 2013

Assobiar para o ar

Já o encontrei duas ou três vezes em corredores de estações de metro. Ouvi agora uma reportagem na rádio sobre a vida subterrânea deste cego que assobia. Numa actividade que vive das contribuições voluntárias de quem passa, a diferenciação do produto é um factor de competitividade. Tendo chegado tarde à vida de pedinte, sem saber cantar ou tocar qualquer instrumento musical, começou a desenvolver uma técnica pessoal de assobio, cujo resultado ecoa agora por corredores labirínticos e frios. Parece ter também assumido uma atitude quase antropológica, procurando construir narrativas de vida a partir das frases soltas de quem passa apressado ou lento por King's Cross ou Holborn.  Anos de trabalho de campo permitiram-lhe, assim, ir adaptando um extenso repertório a cada local ou fase do dia. Clássicos do pop/rock britânico de manhã, quando os viajantes se encaminham apressados para os empregos, improvisações de jazz ao final da tarde. Na estação de St. Paul's, com a proximidade da catedral, é frequente assobiar hinos religiosos de compositores ingleses ou Bach. Por vezes, numa espécie de equivalência, nem o chego a ver. O som propaga-se simplesmente por corredores laterais, encruzilhadas, vãos de escadas rolantes sem que eu tenha tempo ou disposição para procurar a sua origem.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Just like Sister Ray says...

Numa cidade com a dimensão de Londres, sem um centro muito definido, cada habitante tem de ir construindo a sua carta de navegação pessoal. Existem muitas livrarias, por exemplo, mas só aos poucos conseguimos ir localizando as melhores, em locais muito diferentes da cidade. Em termos musicais, a desilusão e o desafio são equivalentes. As lojas de música estão a desaparecer. O abastecimento é garantido por um conjunto muito disperso e reduzido de espaços independentes. A Rough Trade tem duas bases, nas zonas leste e oeste da cidade, junto aos pontos nevrálgicos de Brick Lane e de Portobello Road. Na Berwick Street, em pleno Soho, com um nome que evoca uma canção dos Velvet Underground - de que os Joy Division fizeram uma versão melhorada -, fica a Sister Ray. É um espaço escuro e despretensioso, com filas e filas de capas de CDs e de LPs de vinyl. Ao contrário das grandes cadeias de lojas, funciona quase como uma máquina do tempo, com muitas novidades mas também álbuns de bandas já desaparecidas ou perpétuas. A secção de pós-punk é, enfim, demasiado extensa para apenas uma hora de almoço. Comprei um pouco de Siouxsie and the Banshees, The Fall e Sonic Youth. Depois, de fato e gravata, caminhei pelas ruas sujas do Soho com a letra repetitiva da canção na cabeça: «Had a good night, had a good night, just like Sister Ray says...»


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Hora de almoço

Passei a hora de almoço na National Portrait Gallery. Numa pequena parede do primeiro andar estão  expostos de modo temporário os estudos que ajudaram Patrick Heron a pintar o retrato de T.S. Eliot. Num deles, talvez o mais interessante, Eliot está sentado num cadeirão vermelho. Devido a um racionamento energético do final da década de 1940, envergava um pesado e escuro sobretudo. O estudo terá sido pintado de memória, na casa de Heron, na Addison Avenue, a duas ou três ruas de onde eu próprio moro. Eliot também morou relativamente perto. Quando saí, já tinha começado a chover. Gastei o resto da hora de almoço, como Prufrock, a caminhar pelas ruas que se prolongam como um argumento enfadonho até ao trabalho.
 T.S. Eliot, Patrick Heron, 1949

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Anotações para um livro de estilo

Mr Speaker Order. I apologise for interrupting. Members must calm themselves. Mr Byles, I thought you were normally a model of restraint and civility. Good heavens man! I do not know what has come over you. Calm yourself – take a pill if necessary, but keep calm. Take up yoga!
Câmara dos Comuns, 5 de Dezembro de 2012

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O general inverno chegou, mas foi rapidamente derrotado. Três dias de neve, seguidos por três dias de degelo. Para trás ficaram apenas um frio escuro e profundo, bonecos de neve desfigurados a vaguear pelos parques.

É difícil saber o que leva um adulto, na posse de quase todas as suas faculdades mentais, a aceitar um convite para jogar futebol quando as temperaturas oscilam entre o positivo e o negativo. Em especial quando o convite parte de amigos ucranianos, muito mais preparados para os rigores e as tácticas do futebol de inverno. O termómetro do carro marcava 0,5º C quando entrei em campo, com luvas, várias camadas de roupa e mais entusiasmo que talento. O resto pertence à história e estatística do futebol.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Os objectos principais (2)

A memória biográfica perdura nos objectos. Já depois de ter escrito o texto anterior, encontrei na parte lateral da mala uma etiqueta com informações sobre o proprietário original e a sua viagem marítima:

MR. P.G. ADLARD
"ATHLONE CASTLE" 28/5/65
LOADING AT CAPETOWN
DESTINATION SOUTHAMPTON
REMARKS This package failed to accompany Mr. Adlard when he sailed in "Pendennis Castle" 21/5/65 from Capetown as it had not arrived.
ADDRESS: - 42 Langworth Gate. Lincoln.

Uma breve investigação na internet permitiu-me perceber que a mala terá pertencido a um botânico de Oxford com uma extensa obra publicada sobre o crescimento de árvores, parte da qual baseada em trabalho de campo realizado em África. Embora de circulação restrita, ainda é possível encontrar à venda artigos, sem dúvida interessantes, como  Wood Density Variation in Plantation-Grown Pinus Patula from the Viphya Plateau, Malawi ou Growth and Growing Space. Em 1965, Adlard estaria provavelmente a regressar de mais uma expedição científica com espécies botânicas e cadernos de anotações na mala que agora alberga carrinhos de brincar. Encontrei também o que seria de esperar, um obituário: PHILIP GEWASE ADLARD, 28 December 2006. Aged 80. Em apenas seis anos, os seus objectos pessoais acabaram no mercado de Camden, de forma transitória, para posterior dispersão e diluição da memória biográfica.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Os objectos principais

Quando alguém morre, os objectos pessoais são habitualmente repartidos pelos familiares mais próximos. Depois, quando estes morrem também, os objectos são passados para outros familiares, de forma sucessiva. No momento em que essa cadeia de transmissão é quebrada, por falta de descendentes ou de interesse, os objectos acabam à venda em mercados como o de Camden. Fotografias de casamento, postais de férias, roupas, livros com dedicatória. Numa das minhas visitas ao mercado encontrei uma velha mala com aspecto de ter feito no passado muitas viagens marítimas, repleta de inscrições e etiquetas: Hull, Beira, Pendennis Castle, Southampton, Central Hôtel Lourenço Marques. Este última etiqueta despertou-me o interesse. Disse à vendedora, Foi a cidade em que nasci. Acabámos por perceber que éramos ambos portugueses, ela chegada há muitas décadas a Londres. Comprei a mala. Está agora em doca seca, na nossa sala, a servir de casa para a já vasta coleção de carrinhos do D.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

No animals were harmed in the making of this text

Com os anos, a acumulação de mortes cinematográficas torna-nos resistentes às imagens mais violentas. Num século de cinema, nenhuma forma de morte humana deixou de ser recriada, mas sempre de modo ficcional. Os animais não tiveram a mesma sorte. Não há filme que me tenha aproximado mais do vegetarianismo do que Num Ano de Treze Luas (1978) de Fassbinder, no qual Elvira profere um longo monólogo enquanto caminha por um matadouro. As vacas são abatidas em directo de forma sequencial e mecanizada por funcionários abstraídos da extrema violência dos seus actos. Na verdade, o sacrifício de bovinos tem uma longa tradição na história do cinema. No final de Greve (1925) de Eisenstein, as imagens do abate real de uma vaca são intercaladas de modo simbólico com as da carga policial sobre os operários em greve. Desaconselho vivamente qualquer dos filmes a quem (como eu) prefira as suas vacas em forma de bitoque.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Em certas situações, a sociedade funciona por turnos. Como são mais os que, na passagem de ano, fazem o turno da noite, a manhã do dia seguinte é de uma gloriosa calma pós-apocalíptica, sem ruído ou pessoas nas ruas. Aos poucos, os sobreviventes começam a sair de casa para aproveitar as potencialidades de uma cidade menos habitada - ressentidos também com os que acabam de deitar-se. Nós, cinco sobreviventes, percorremos as ruas junto ao rio até à Tate Britain, sem qualquer trânsito, para ver a exposição dos Pré-Rafaelitas. Em seis ou sete salas vimos as pinturas mais representativas do movimento artístico inglês, com uma das crianças no carrinho, outra ao colo e a terceira pela mão a fazer perguntas sobre as cenas representadas nos quadros. É difícil dizer a uma criança, por exemplo, que a Ophelia de John Everett Millais não está a nadar de costas num rio, totalmente vestida, mas que se afogou; ou que o Chatterton de Henri Wallis está a dormir um sono menos que eterno. Regressámos a casa cedo, mas com o sol já a baixar por detrás das quatro torres da estação de Battersea.

Auto-retrato com relógio (Londres, ano 4)


O espelho

Na sequência inicial d'O Espelho (1975) de Tarkovsky, uma terapeuta - investida de autoridade simbólica por uma bata branca e um mau penteado - aplica um conjunto de técnicas agressivas de hipnose para curar um rapaz dos seus problemas na fala. Tenho dúvidas de que a mudez que atingiu este blogue ao longo dos últimos meses possa ser tratada com o mesmo tipo de exercícios. Em todo o caso, vou concentrar toda a minha força de vontade nas mãos abertas, como é instruído a fazer o rapaz do filme, para ver se as palavras fluem com maior facilidade ao longo de 2013. Não é uma promessa, apenas a descrição da terapêutica.