terça-feira, 22 de junho de 2010

The Shipwreck, J.M.W. Turner, 1856
Estou a ler uma biografia de William Gladstone, um dos políticos britânicos mais influentes da segunda metade do século XIX. Era um homem meticuloso, que mantinha o seu diário sempre actualizado com pormenores da sua vida pessoal e profissional. Era também bastante religioso e, como tal, com uma percepção muito forte do pecado, que não se abstinha de praticar. Os temas da fraqueza perante as tentações e da culpa são recorrentes nas entradas do diário. Numa tentativa de cura, elaborou uma lista de:

Formas de pecar: 1. Thought, 2. Conversation, 3. Hearing, 4. Seeing, 5. Touch, 6. Company.

Alturas em que estava mais receptivo ao pecado: 1. Idleness, 2. Exhaustion, 3. Absence from usual place, 4. Interruption of usual habits of time, 5. Curiosity of knowledge, 6. Curiosity of sympathy.

Formas de contrariar as tentações ou expiar os pecados: 1. Prayer for blessing on any act about to be done, 2. Realising the presence of the Lord crucified & Enthroned, 3. Immediate pain.

Em resumo, Gladstone frequentava prostitutas e depois autoflagelava-se, não em sentido figurado, mas mesmo com uma chibata. E julgo que é essa a descrição mais fiel da sociedade vitoriana, uma mistura de puritanismo e libertinagem, de culpa e tentativa de absolvição, ambas recorrentes e sem significado.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Pente sete

Já andava para cortar o cabelo há alguns dias, mas quando a nossa equipa ganha por 7-0 no Mundial temos de aproveitar a oportunidade para entrar no barbeiro. A conversa é muito mais fluída, entre tesouradas e análise desportiva, eliminando o habitual desconforto de ter de inventar conversa com um quase desconhecido. O barbeiro libanês tem a televisão ligada enquanto trabalha, vê todos os jogos. O cabelo da população de Kensington deve ressentir-se durante as três ou quatro semanas que dura o Mundial.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O tempo em Londres é muito instável. A primeira coisa que se percebe é que nunca ninguém corre quando é surpreendido por um aguaceiro súbito, como se fosse má educação reparar que está a chover. Já vi pessoas de camisa colada ao corpo a andarem à chuva como se estivessem a passear por um prado no sul de França em pleno Agosto. Ninguém exibe, como eu, um ar de pânico ou começa a correr por entre as poças de águas em busca de um parapeito ou de uma porta aberta, como se fugisse à polícia. Lembro-me de, com seis ou sete anos ter discussões filosóficas com os meus amigos, que só os miúdos dessa idade conseguem ter, sobre se nos molhávamos mais se continuássemos a andar devagar ou se corrêssemos, com cálculos complexos sobre a dinâmica das gotas de água. Os britânicos parecem ter tomado posição pela primeira teoria há bastante tempo. Hoje, na hora de almoço, uma chuvada surpreendeu-me em pleno parque e, para não ser mal-educado, continuei a andar normalmente. O meu pai costuma dizer que chuva civil não molha militar, mas eu nem à inspecção fui e por isso cheguei ao trabalho num estado lastimável. O casaco está agora pendurado, a secar, enquanto escrevo.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Charing Cross

Eu e o V. andámos perdidos pelos alfarrabistas de Charing Cross, entre estantes de livros raros e caves de livros em saldos, a onde se desce com uma sensação de perigo. Numa delas, por mero acaso, deparámo-nos com uma estante repleta de livros portugueses. Trouxe a Poesia Toda do Herberto Heder (Assírio & Alvim) e a Constituição da República Portuguesa de 1976 (INCM), cada um por uma libra, cada um com frases misteriosas como estas:

São tarefas fundamentais do Estado: c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.

ou

Gostaria de inclinar-me sobre o tumulto dos teus violinos. Coloca as mãos no meu inocente nascimento. Vê como dou flor, e durmo.

No regresso à luz do sol, falámos sobre como é esse o destino possível das nossas próprias bibliotecas, ainda em construção: vendidas a alfarrabistas pelos nossos descendentes, num período de dificuldades financeiras, e os volumes depois dispersos, um a um, pelas estantes de pessoas que nunca chegaremos a conhecer, mas que não se importam, tal como nós, de percorrer caves labirínticas de livros usados.