segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nada consegue descrever melhor o carácter conservador britânico do que a longevidade das soap operas. The Archers, uma radionovela passada na vila rural imaginária de Ambridge, está no ar desde 1950. Já tem mais de 16 mil episódios e alguns clubes de fãs espalhados pelo país. Parece que existem mesmo referências a episódios da série na correspondência pessoal de Philip Larkin, recentemente publicada em livro. Na televisão, Coronation Street está a fazer cinquenta anos e Eastenders vinte e cinco. É como se a Vila Faia nunca tivesse terminado e o João Godunha continuasse a chorar eternamente a morte da Mariette. Caso queiram saber o que andam a perder, transcrevo a sinopse do episódio de hoje de The Archers:

Kenton is trying to catch up with his last minute Christmas cards when Pat turns up at Lower Loxley to deliver some yoghurts. Elizabeth is in a flap as she hasn’t yet received Lily’s main present: a mobile phone with internet, ordered through the web.

Elizabeth has set up a shot of Kenton as the highwayman surprising some children. It’s a great success and will be featured in the Echo. Next year she hopes to use it in their own publicity.

Tony brings over a replacement present for Helen, a beautiful mobile for the baby. Ian really likes it and encourages Tony to waits and give it her himself. Although Tony would love to, he just leaves it with Ian.

When Helen opens the gift, she thinks it’s pretty, but still feeling very hurt by Tony. She tells Ian that Pat must have put her dad up to it. Helen doesn’t ring Tony, and when Pat suggests Tony might phone his daughter he sadly suggests that he’d better leave her to ring him when she’s ready. But as time goes on, Tony realises that Helen isn’t going to phone him at all.

domingo, 19 de dezembro de 2010

To the castle and back

Ontem metemo-nos no carro com destino a Windsor. Percorremos as ruas da vila e fizemos construções de neve junto às muralhas do castelo, onde não chegámos a entrar. No regresso, num anoitecer prematuro, passámos por um carrossel iluminado no meio da neve e por um parque infantil soterrado na planície gelada. As crianças já dormiam no banco de trás quando, a trinta à hora, entrámos na auto-estrada rumo ao centro de Londres. Há notícias de voos cancelados e de quatro europeus do sul, residentes em Holland Park, alegremente perdidos no meio da neve.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Novo Concerto Estratégico

Os Arcade Fire entraram em palco como um grupo de saltimbancos que toma de assalto a praça central de uma vila medieval, com uma troca incessante de instrumentos entre os elementos da banda e alguns sinais exteriores de loucura. O O2 Arena estava totalmente cheio. É um espaço mais ou menos do tamanho da Pavilhão Atlântico, se percebem o que quero dizer. A Cimeira da Nato deve ter sido boa, aprovou-se um novo conceito estratégico, etc., mas não teve um encore de duas músicas com o público todo a cantar. No final do concerto seguímos a multidão até à estação de metro mais próxima com a primeira neve do ano a cair-nos em cima.

Falar de dois concertos num espaço de tempo reduzido pode transmitir a ideia enganadora de uma vida social intensa, quando se trata apenas de uma coincidência estatística no meio dos dias domésticos e ritualizados. Escurece cedo e está frio. Os inícios das noites são passados a tentar domesticar o D. e a servir de trampolim à L. Depois, com os dois já na cama, sinto-me cansado e satisfeito como no final de um dia de praia.

Nota sobre o aparente uso do plural majestático: Tanto quanto sei, não existe uma única gota de sangue aristocrático na minha família. Parte dos meus textos são escritos no plural porque incluem de modo implícito a J. Na maioria dos casos, é mesmo ela a principal instigadora das nossas saídas, sempre pronta a tentar-me com bilhetes para concertos e anotações coloridas na agenda cultural.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Live at the Brixton Academy

Fomos ontem à Brixton Academy ver os The National. A sala é um antigo teatro Arte Nova, com a dimensão ideal para concertos. O ambiente é uma mistura de Coliseu e Voz do Operário e como fomos dos primeiros a entrar consegui tirar esta foto de uma natureza morta com guitarras, bateria, baixo e a luz dos projectores. O concerto em si foi muito bom. O vocalista começou com uma pose séria e fato e gravata, mas foi-se transformando progressivamente num Caliban alcoolizado, com gritos, convulsões e longas incursões pelo meio do público. No final, já sem forças, cantou a última música (Vanderlyle Crybaby Geeks) sem microfone entre duas guitarras acústicas. Saímos para a noite gelada com um zumbido nos ouvidos e na manhã seguinte, esta manhã, nevou.

domingo, 28 de novembro de 2010

Previsão de tempo para utopia e arredores*

Boa parte dos meus textos têm uma natureza meteorológica. Falar do tempo é uma forma de manter uma conversa quando não se tem assunto. Para além desse aspecto, é verdade que a mudança de Lisboa para Londres é acompanhada por uma maior consciência em relação ao clima. As estações do ano são mais marcadas e as paisagens dos extensos parques públicos mudam de semana a semana. Pelo termómetro, estão -4º C lá fora, o relvado está coberto por uma fina película de gelo. De forma aparentemente paradoxal, nunca passei tão pouco frio no Inverno. As casas estão preparadas para a época e não preciso de andar a arrastar um aquecedor pela trela de uma divisão para a outra ou de ver televisão enrolado numa manta. Quando saimos, com mais camadas de roupa que uma varina da Nazaré, o frio entranha-se com uma força revigorante, como os banhos de mar no primeiro dia do ano a que assistimos pelo telejornal. Um mergulho rápido nas ruas de Londres e depois o regresso ao aquecimento central.

(*Título emprestado por Charles Simic)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Tendo passado a infância e adolescência em escolas de Linha de Sintra, não há praticamente nada que não tenha visto ser feito numa sala de aula. Vi professores a chorar, alunos a sairem pela janela ou a jogarem futebol no fundo da sala. Talvez tenha existido uma época idílica em que os estudantes levavam maçãs polidas aos professores e recitavam a tabuada dos sete de pé ao lado da carteira (segundo a minha mãe, até saudavam os professores de braço estendido todas as manhãs), mas isso foi muito antes do meu tempo. E, apesar da aparente insegurança, desde pelo menos os oito anos que passei a ir sozinho para a escola com os meus amigos, num percurso que, a partir do Secundário, incluia uma viagem de comboio que passávamos a trocar cassetes de música ou em coreografias de indiferença com o sexo oposto. Na verdade, na memória selectiva daqueles tempos, só quase me consigo lembrar das tardes de terça-feira passadas a ler o Blitz, das longas conversas atrás do pavilhão com os amigos e dos nomes das raparigas por quem quase morri de amor, vez após vez. Dizem-me que as coisas estão piores, muito piores. É verdade, o Blitz acabou, já não há mais pregão da semana.
Os pessimistas são vistos como sábios, os optimistas como ingénuos. Não há comentário a que o sarcasmo não acrescente um tom de inteligência. No entanto, de um ponto de vista lógico, não há motivo para que as previsões de um pessimista estejam certas mais vezes que as de um optimista. São ambos defeitos de carácter e, como na guerra, temos de escolher um lado. Por isso, embora me digam que o estado social vai acabar dentro de momentos, que os juros da dívida vão atingir os 15%, que o Sporting não voltará a ganhar um campeonato, que isto já não é o que era, sou suficientemente ingénuo para continuar a respirar em tempos de austeridade e a ouvir, enquanto escrevo, a Billie Holiday a cantar Good Morning Heartache, com voz de quem está alegremente resignada a perder o jogo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Um dos livros que trouxe da John Sandoe foi Sonnets from the Portuguese de Elizabeth Barret Browning, que nada mais tem de português que o título, com o qual a poeta encobriu a autoria dos poemas, alegando tratarem-se de traduções de textos de origem portuguesa. Aparentemente, o marido de Elizabeth, Robert Browning, tratava-a também por "my little Portuguese", em momentos mais íntimos que a história da literatura conquistou à reserva da vida privada. Um dos sonetos é este:


I lift my heavy heart up solemnly,
As once Electra her sepulchrul urn,
And, looking in thine eyes, I overturn
The ashes at thy feet. Behold and see
What a great heap of grief lay hid in me,
And how the red wild sparkles dimly burn
Through the ashen greyness. If thy foot in scorn
Could tread them out to darkness utterly,
It might be well perhaps. But if instead
Thou wait beside me for the wind to blow
The grey dust up... those laurels on thine head,
O my Beloved, will not shield thee so,
That none of all the fires shall scorch and shred
The hair beneath. Stand farther off then! go!
Fui fazer uma visita à John Sandoe, uma pequena livraria de Chelsea onde há livros espalhados por todo o lado, como no sonho de um bibliófilo: nas escadas que levam ao primeiro andar e nas que descem para a cave, alinhados em estantes ou empilhados em montes instáveis. E apesar de há muito as salas exíguas terem perdido o combate com o fluxo constante de livros, os volumes estão arrumados com uma certa ordem, por funcionários que parecem estar conscientes de que têm o melhor emprego do mundo. É utilizado o sistema inverso do da Ler Devagar, na LX Factory, onde o espaço é vasto, mas os livros encontrados apenas com muita sorte e algumas técnicas de alpinismo. Trouxe da John Sandoe algum Robert Frost, John Burnside e Elizabeth Barrett Browning. Se quiserem passar por lá, fica em 10 Blacklands Terrace.

Hora de Inverno

A mudança para a hora de Inverno tem-me deixado sonolento e letárgico. Só me apetece enroscar num canto e esperar que os meses mais frios passem. Os esquilos enterram as últimas nozes nos relvados dos parques e as folhas passaram quase todas dos ramos das árvores para os passeios. As pessoas saem do trabalho para uma noite cerrada antes das cinco da tarde. São já só vultos que se cruzam pelas ruas, a caminho de casa, e entram nas estações de metro com as golas dos sobretudos levantadas.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Combate de Outonos


Vista da nossa janela, ontem de manhã. Dedicado à R., que tem uma paisagem semelhante do outro lado do Canal.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O período de duas ou três horas entre o regresso do trabalho e o deitar dos miúdos é um caos de brinquedos, cavalitas, duas crianças a pularem em cima do peito e dos abdominais, escondidas, gargalhadas, banhos e choros. Depois fica tudo silencioso, como agora. A L. e o D. na cama, agarrados aos seus bonecos, a marcar o início do período de duas ou três horas antes de eu próprio me ir deitar. É suposto concentrar nele todas as actividades que não consigo fazer durante o dia, como alimentar o apetite voraz do blogue, ler, ver televisão, adormecer a ver televisão, etc. Às vezes só dá, como hoje, para ouvir os CDs comprados no fim-de-semana numa loja independente de Brighton: The Fall, Interpol, The Psychedelic Furs, Yeah Yeah Yeahs. Uma banda sonora razoável para um fim de dia.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Nada reflecte melhor a mudança geracional que está a ocorrer na política britânica do que ouvir o Primeiro-Ministro conservador citar um sketch dos Monty Python num discurso perante militantes: Remember what they said about us? They called us a dead parrot. They said we had ceased to be. That we were an ex-party. Turns out we really were only resting.

Primeiro-Ministro (David Cameron): 44 anos
Líder da oposição (Ed Miliband): 41 anos
Ministro das Finanças (George Osborne): 39 anos

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Todos os momentos históricos têm os seus revisionismos. Nessa história alternativa, hoje seríamos uma monarquia nórdica, rica e igualitária, sem défice público ou corrupção, não tivesse sido a revolução do 5 de Outubro. Acredito profundamente que a implantação da República constituiu um passo importante num processo de modernização do país que ainda não terminou. A Primeira República não foi perfeita, como nenhum regime anterior ou posterior, mas a consolidação do princípio da igualdade perante a lei, a eliminação dos privilégios obtidos pelo nascimento e a separação entre a igreja e o Estado foram conquistas importantes, mesmo com os excessos e retrocessos que se seguiram. Por isso, Viva a República. Como estamos muito longe da Praça do Município e num país monárquico, comemorámos a revolução com uma visita à exposição de Paul Gauguin, na Tate Modern, nove ou dez salas repletas de quadros pintados na Bretanha, em Copenhaga, na Martinica ou no Tahiti. Vimos o Cristo Amarelo e mulheres polinésias semi-nuas, o mar revolto da Bretanha e praias do Pacífico.

domingo, 3 de outubro de 2010

Shakespeare never went to Venice, Homer never went to Troy, Dante never went to hell. Encontrei a citação numa edição atrasada de um suplemento literário. De facto, com alguma imaginação, conseguimos descrever lugares onde nunca estivémos, mas sobre os quais lemos relatos em livros ou vimos cenas em filmes. Em Veneza já estive, primeiro com Thomas Mann e depois com a J., que é muito melhor companhia. E apesar de nunca ter estado em Tróia consigo descrever, sem preocupações de rigor histórico, as muralhas diante das quais Aquiles arrastou o corpo de Heitor. Londres, esta noite, no início do Outono, é uma cidade de relvados húmidos e sapatos enlameados alinhados à porta dos apartamentos. O brilho da iluminação pública reflecte-se nos passeios molhados e, por ser domingo, famílias regressam a casa nos seus automóveis, de onde retiram crianças sonolentas. Para quem não está aqui, Londres terá de ser, hoje, apenas isto.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Câmara de Londres montou um sistema público de bicicletas, muito prático e barato. A promoção foi feita pelo próprio Mayor de Londres, Boris Johnson, o segundo presidente de câmara com mais piada que já tive, depois de Santana Lopes. Encomendei a minha chave de acesso pela internet e, no sábado, quando chegou por correio, fui dar uma volta pelo bairro, acompanhado pela L., veloz ao meu lado pelo passeio na sua trotineta. Lembro-me perfeitamente de ter aprendido a pedalar na bicicleta emprestada do Pedro e incentivado pelos conselhos do Jorge, um vizinho alguns anos mais velho: «-Olha para a frente, não olhes para a roda.» Os londrinos, como quase todos os habitantes do norte da Europa, são grandes adeptos do uso da bicicleta. É frequente ver senhores com pose aristocrática e fato completo a caminho do trabalho montados numa ou mães com sistemas complexos para transportarem bebés. Criado no sul, confesso que estava habituado a encarar as bicicletas como uma primeira etapa rumo a algo maior, mais potente, com mais rodas, jantes de liga leve e estofos de cabedal. Agora, é possível que me vejam de vez em quando a pedalar em direcção ao pôr-do-sol, até desaparecer por entre as multidões que cruzam as ruas de Londres, em todas as direcções, de modo constante, aleatório, coordenado.

domingo, 19 de setembro de 2010

Rescaldo do jogo

Benfica, 2 - Sporting, 0

Dishes, The Pulp
Stars and Sons, Broken Social Scene
Suburban War, Arcade Fire
Obstacle 1, Interpol
I Dreamed I Dream, Sonic Youth
Night Time, Bauhaus
The Cutter, Echo & the Bunnyman
Subterranean Homesick Alien, Radiohead
Runaway, The National
...
A distância é isto, apesar de toda a sofisticação tecnológica, não consigo assistir ao Benfica-Sporting pela internet. Como os idosos na minha infância, tenho o auricular no ouvido, mas não ouço o relato. Pus o walkman no aleatório, para abafar o ruído de um estádio distante, e ele deu-me A Means to an End (Joy Division), Dizzy (Siouxie & the Banshees), Play for Today (The Cure) e The Sweets (Yeah Yeah Yeahs). O Sporting pode estar a perder, mas a seguir na lista vem Rudie Can't Fail (The Clash), o que pelo menos já garante a vitória moral.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Quatro Quartetos

Como já contei, comprei num alfarrabista de Camden os Four Quartets, de T.S. Eliot. Agora que o li com mais atenção reparei que o dono original do livro sublinhou a lápis alguns versos do primeiro conjunto de poemas, de que provavelmente terá gostado mais. São frases soltas, em páginas diferentes, que alinhadas ficam assim:

The inner freedom from the practical desire,
A white light still and moving,
Distracted from distraction by distraction,
At the still point of the turning world.

O livro não tem assinatura nem dedicatória e por isso é impossível descobrir o leitor que construiu este poema no interior do poema.
Em Londres, a agenda cultural é muito vasta. Muito mais que o tempo e o dinheiro disponíveis. Perdi, por exemplo, o concerto dos The National, no Royal Albert Hall, e o dos The XX, no norte da cidade, ambos esgotados. Amanhã há o Papa em Hyde Park e as ruas começam a ser encerradas ao trânsito, as bandeirinhas penduradas ao longo do percurso. Os bilhetes nem são caros (entre 5 e 25 libras), mas as músicas já estão um pouco batidas. Para evitar a confusão, vou manter-me afastado do centro da cidade até Domingo, mesmo sabendo que é como ir a Londres e não ver o Papa.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pedalar sem mãos

No primeiro ano agimos como estranhos, no segundo como condutores alcoolizados. Sentimo-nos plenamente confiantes enquanto vamos cruzando linhas contínuas e atravessando sinais vermelhos. Sem uma vigília constante, os erros culturais e gramaticais sucedem-se sem que me aperceba. As pequenas conquistas acontecem quando me perguntam por uma ruela estreita do outro lado da cidade e sei indicar o caminho, que autocarro apanhar e o nome de uma pequena loja de antiguidades que existe numa transversal. É quase Outono e, ao fim de um ano, Londres deixou de ser apenas um mapa com nomes exóticos.
O António nasceu hoje, já com nome próprio, livrando-se assim de se chamar Guido, como o santo que se comemora a 12 de Setembro. Quando estamos longe, temos tendência a querer que tudo fique parado, que as pessoas sustenham a respiração, como numa sessão de radiografia, até nós voltarmos. Mas alguns amigos mudam de emprego, outros trocam de namorada e uns, sem qualquer consideração, insistem em ter filhos, sem que nós possamos guiar até à maternidade para pegar na criança ao colo e fumar um charuto imaginário com o pai. Sendo assim, as notícias chegam por telemóvel e as prendas seguem por correio, numa correspondência de afectos. Já só faltam as fotos, para podermos dizer mais tarde, como o Vítor Espadinha, que foi em Setembro que te conheci.

domingo, 5 de setembro de 2010

Depois de quatro semanas divididas entre o Alentejo, Lisboa, Trás-os-Montes e o Douro Litoral, regressei a Londres para uma semana de chuva contínua. No fim-de-semana, quando o tempo melhorou, fui visitar Primrose Hill, na zona norte de Londres. O pretexto foi uma peregrinação à casa onde viveu Sylvia Plath, com os seus dois filhos, e onde se suicidou com a cabeça enfiada no fogão. Levava a morada anotada num papel e fiquei dois ou três minutos em frente ao 23 de Fitzroy Road, apenas o tempo suficiente para satisfazer a curiosidade de turista, antes de me voltar a embrenhar pelas ruas calmas do bairro. Andei perdido e desci gradualmente de Belzise até à agitação de Camden Town. Num alfarrabista do Stables Market andei com a cabeça inclinada pelas lombadas à procura de um livro de Plath, que não encontrei, e em vez disso trouxe uma edição antiga de Four Quartets de T. S. Eliot e, por recomendação do dono, um livro de John Betjeman, de quem não gosto particularmente, para ser simpático e porque custava só cinco libras. Ao sair, recomeçou novamente a chover e apressei o passo com os dois livros a proteger a cabeça, para me relembrar da utilidade da poesia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Regressei há quase duas semanas e ainda estou a fazer o habitual luto do Verão. A pele bronzeada e as fotografias são o que resta dos dias passados entre a toalha e o mar, a fazer construções de areia para os miúdos, ciclicamente destruídas pela rebentação. Trabalhos efémeros, sem objectivo definido, muito retemperadores. Construí dezenas de muralhas e de castelos sem qualquer sensação de tempo perdido, para depois os abandonar de repente, para dar um mergulho no mar, como uma civilização de foge apressada da invasão dos bárbaros deixando para trás ruas e edifícios vazios.
Os clientes já começam a juntar-se à porta, a encostarem a cara aos vidros, mas as cadeiras ainda estão voltadas em cima das mesas e as luzes fechadas. Isto é comércio tradicional: tem horário reduzido, encerra para férias prolongadas e por vezes fica com uma placa na porta a dizer «volto já», quando me apetece ir tomar um café ou dar uma volta pelo bairro. Fico longos períodos sem aparecer. Não é um negócio muito lucrativo nem tem muitos clientes, só os mais habituais, que já se habituaram a ser mal servidos, mas continuam felizmente a aparecer. Sempre é melhor fazer compras enquanto se conversa sobre o tempo ou a Selecção Nacional do que, nas grandes superfícies, se espera de que o tapete rolante vá arrastando as frutas e os legumes para o abismo dos sacos de plástico. Há muitas técnicas para tentar prolongar o Verão, mas eu, infelizmente, já as esgotei a todas. – Seja muito bem-vinda de volta ao nosso estabelecimento, D. Rosa. O que vai ser hoje?...

sábado, 24 de julho de 2010

Encerrado para descanso do pessoal

Informamos os estimados clientes de que este blogue se encontra encerrado para descanso do pessoal até ao final de Agosto. Esperamos que a situação não cause grandes inconvenientes e prometemos regressar com o espaço renovado, a colecção Outono/Inverno e a pele bronzeada.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

It is difficult to find the ideal birthday present for a spouse since she is daily recipient of untold blessings. This year I gave my wife sperm. It was equine sperm. The expensive ejaculation was from the son of the German dressage champion His Highness, of which horsey readers may have heard. The sperm will be turkey-basted into Athena, a refined ‘brumby’, or wild horse, rescued at great cost from the north –western wilderness of Australia. There is hope of a foal next July in which I will pretend to be interested. Barry Humphries, Spectator, 3 de Julho 2010

Não te preocupes J., amanhã dar-te-ei um presente mais aceitável, mesmo que tenha de passar o resto desta noite a vaguear pelas lojas de Londres, a recolher a simpatia das empregadas de pronto-a-vestir, acostumadas a reconhecer a angústia de um homem na véspera do aniversário da mulher.

(Aos meus amigos preocupados em ver-me fazer uma citação da Spectator, posso garantir que a mudança para o Reino Unido não me tornou conservador. Pelo contrário. Leio a revista por dever profissional e, confesso, também por prazer pessoal. Não há nada mais engraçado que ler sobre um mundo que julgava existir apenas nos romances vitorianos ou mesmo em livros de ficção científica.)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Circle line

Ao meu lado esta manhã, numa carruagem de metro cheia de gente, uma rapariga lia um livro de auto-ajuda: How to live an inspired life starting from now. Saí em St. James’s Park e a composição levou-a depois ziguezagueando veloz pelos túneis, como uma serpente que se afasta para digerir a sua presa. Quando chegar ao seu destino, a rapariga fechará o livro e o metro inverterá a marcha, iniciando ambos mais um percurso de uma viagem circular.
E o Verão acabou, a meio de Julho, ou voltará mais tarde, quando já nos tivermos esquecido dele.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Mille e tre

Depois de duas ou três semanas de sol e calor, começou a chover. Os parques já estavam a começar a ficar amarelados – muito ligeiramente amarelados –, o que estava a preocupar a população, que trata a relva como um bem de primeira necessidade. Para aproveitar as noites quentes, fomos ontem à noite assistir ao Don Giovanni ao ar livre, em Holland Park. Em Lisboa, na Gulbenkian, temos o Jazz em Agosto, aqui temos ópera no parque. E diverti-me bastante, apesar de gostar mais de jazz que de ópera. Em termos de enredo, o Don Giovanni é uma espécie de telenovela venezuelana, com paixões cruzadas, traições, sentimentos à flor da pele e algum moralismo. Entre os actos, o público dividiu-se entre os parapeitos de pedra do parque, com garrafas de champanhe, vinho branco e rosé e copos de plástico. Para nos ambientarmos, eu e a J. pedimos no bar dois copos de Pims, uma espécie de sangria, mas só já tivemos tempo de beber metade antes de os badalos anunciarem o recomeço do espectáculo e Don Giovanni começar a tentar seduzir mais uma criada.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os ingleses têm uma expressão muito curiosa: tongue in cheek. Já ouvi utilizarem-na muitas vezes, nos contextos mais respeitáveis, mas só agora, após uma busca rápida no Google, consegui descobrir o significado. O problema é que é uma metáfora muito visual e não conseguia perceber o que poderia querer dizer colocar a língua na bochecha de outra pessoa. Mas, afinal, a expressão refere-se a colocarmos a língua na nossa própria bochecha, uma técnica que, se experimentarem, como acredito que estão agora a tentar, verão que não conseguem manter uma cara séria. De facto, os ingleses usam a frase para se referirem a qualquer coisa que não é para levar a sério, geralmente propostas do Governo ou da oposição ou a maioria dos textos que publico aqui.

Há longos períodos em que não me apetece escrever. Quando ouço alguém que diz que sente um impulso físico para a escrita, não sinto sequer inveja, apenas distanciamento e curiosidade, como se estivessem a dizer que são canhotos ou que conseguem tocar com a ponta do polegar no pulso, características que não possuo e me deixam indiferente. Rimbaud remeteu-se ao silêncio público muito novo, mas já tinha escrito o suficiente para uma vida. Eu vou interrompendo o silêncio de forma intermitente, quando quase toda a gente perdeu a esperança de ver aparecer uma data mais recente nos posts do blogue. Se querem saber o que fiz entretanto, basta consultarem o calendário do Mundial. Estive a torcer por equipas que foram sendo sucessivamente eliminadas e agora já só me restam os uruguaios. Também fui tendo tempo para me deitar na relva, de vez em quando, na parte de trás da nossa casa, enquanto os miúdos partilhavam a piscina insuflável dos vizinhos de baixo. Chegam-me notícias do calor em Lisboa, demasiado calor, dizem-me, como se me quisessem consolar.

terça-feira, 22 de junho de 2010

The Shipwreck, J.M.W. Turner, 1856
Estou a ler uma biografia de William Gladstone, um dos políticos britânicos mais influentes da segunda metade do século XIX. Era um homem meticuloso, que mantinha o seu diário sempre actualizado com pormenores da sua vida pessoal e profissional. Era também bastante religioso e, como tal, com uma percepção muito forte do pecado, que não se abstinha de praticar. Os temas da fraqueza perante as tentações e da culpa são recorrentes nas entradas do diário. Numa tentativa de cura, elaborou uma lista de:

Formas de pecar: 1. Thought, 2. Conversation, 3. Hearing, 4. Seeing, 5. Touch, 6. Company.

Alturas em que estava mais receptivo ao pecado: 1. Idleness, 2. Exhaustion, 3. Absence from usual place, 4. Interruption of usual habits of time, 5. Curiosity of knowledge, 6. Curiosity of sympathy.

Formas de contrariar as tentações ou expiar os pecados: 1. Prayer for blessing on any act about to be done, 2. Realising the presence of the Lord crucified & Enthroned, 3. Immediate pain.

Em resumo, Gladstone frequentava prostitutas e depois autoflagelava-se, não em sentido figurado, mas mesmo com uma chibata. E julgo que é essa a descrição mais fiel da sociedade vitoriana, uma mistura de puritanismo e libertinagem, de culpa e tentativa de absolvição, ambas recorrentes e sem significado.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Pente sete

Já andava para cortar o cabelo há alguns dias, mas quando a nossa equipa ganha por 7-0 no Mundial temos de aproveitar a oportunidade para entrar no barbeiro. A conversa é muito mais fluída, entre tesouradas e análise desportiva, eliminando o habitual desconforto de ter de inventar conversa com um quase desconhecido. O barbeiro libanês tem a televisão ligada enquanto trabalha, vê todos os jogos. O cabelo da população de Kensington deve ressentir-se durante as três ou quatro semanas que dura o Mundial.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O tempo em Londres é muito instável. A primeira coisa que se percebe é que nunca ninguém corre quando é surpreendido por um aguaceiro súbito, como se fosse má educação reparar que está a chover. Já vi pessoas de camisa colada ao corpo a andarem à chuva como se estivessem a passear por um prado no sul de França em pleno Agosto. Ninguém exibe, como eu, um ar de pânico ou começa a correr por entre as poças de águas em busca de um parapeito ou de uma porta aberta, como se fugisse à polícia. Lembro-me de, com seis ou sete anos ter discussões filosóficas com os meus amigos, que só os miúdos dessa idade conseguem ter, sobre se nos molhávamos mais se continuássemos a andar devagar ou se corrêssemos, com cálculos complexos sobre a dinâmica das gotas de água. Os britânicos parecem ter tomado posição pela primeira teoria há bastante tempo. Hoje, na hora de almoço, uma chuvada surpreendeu-me em pleno parque e, para não ser mal-educado, continuei a andar normalmente. O meu pai costuma dizer que chuva civil não molha militar, mas eu nem à inspecção fui e por isso cheguei ao trabalho num estado lastimável. O casaco está agora pendurado, a secar, enquanto escrevo.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Charing Cross

Eu e o V. andámos perdidos pelos alfarrabistas de Charing Cross, entre estantes de livros raros e caves de livros em saldos, a onde se desce com uma sensação de perigo. Numa delas, por mero acaso, deparámo-nos com uma estante repleta de livros portugueses. Trouxe a Poesia Toda do Herberto Heder (Assírio & Alvim) e a Constituição da República Portuguesa de 1976 (INCM), cada um por uma libra, cada um com frases misteriosas como estas:

São tarefas fundamentais do Estado: c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.

ou

Gostaria de inclinar-me sobre o tumulto dos teus violinos. Coloca as mãos no meu inocente nascimento. Vê como dou flor, e durmo.

No regresso à luz do sol, falámos sobre como é esse o destino possível das nossas próprias bibliotecas, ainda em construção: vendidas a alfarrabistas pelos nossos descendentes, num período de dificuldades financeiras, e os volumes depois dispersos, um a um, pelas estantes de pessoas que nunca chegaremos a conhecer, mas que não se importam, tal como nós, de percorrer caves labirínticas de livros usados.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Todos diferentes, todos iguais

Transcrição (e tradução livre) do monólogo de um taxista londrino obrigado a desviar-se da sua rota habitual devido aos ensaios para o Trooping the Colour, desfile de beefeaters nas celebrações anuais do aniversário da Rainha :

Adoro desfiles militares, com a música e os soldados de fardas vermelhas a marcharem, mas a Família Real era fuzilá-los a todos, bando de inaladores de cocaína e de corruptos. Na Praça Vermelha puseram lá o Lenine e as pessoas esperam horas para ver o corpo, aqui ficam vinte minutos em frente ao Palácio de Buckingham e vão-se embora. Devia morrer alguém para isto animar. Podiam mesmo empalhar a Rainha Mãe e colocá-la numa praça da cidade, para aumentar o turismo.

domingo, 23 de maio de 2010

Passámos o fim-de-semana à deriva num tapete azul, de relvado em relvado. Uma jangada de dois metros por um e meio, com paragens na parte de trás da nossa casa e um pouco por todo o lado em Regent's Park. Ainda não tínhamos visitado o parque, por ficar do outro lado da cidade e por não faltarem espaços verdes mais perto de nós. Conhecia-o apenas das longas descrições nos livros da Virginia Woolf, com as quais nos podemos orientar por Londres melhor do que com o Google Maps ou o Via Michelin. Estivémos ao lado de uma jovem família muçulmana, de mulher totalmente coberta e marido vestido de forma ocidentalizada, e mais tarde ao lado de uma rapariga em biquini, quase topless. Por todo o lado famílias deitadas na relva e rapazes e raparigas a jogarem futebol, cricket ou rugby. Estivémos deitados no tapete azul, à sombra, e de vez em quando um dos miúdos aventurava-se no interminável e sereno aceano de relva.
Away from people—they must get away from people, he said (jumping up), right away over there, where there were chairs beneath a tree and the long slope of the park dipped like a length of green stuff with a ceiling cloth of blue and pink smoke high above, and there was a rampart of far irregular houses hazed in smoke, the traffic hummed in a circle, and on the right, dun-coloured animals stretched long necks over the Zoo palings, barking, howling. There they sat down under a tree.
"Look," she implored him, pointing at a little troop of boys carrying cricket stumps, and one shuffled, spun round on his heel and shuffled, as if he were acting a clown at the music hall.

Mrs Dalloway, Virginia Woolf (Septimus e Lucrezia em Regent's Park)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Lembro-me de o A. dizer que há uma certa estranheza quando os jogadores de futebol começam a ser mais novos do que nós. Estamos a atingir uma fase de transição semelhante, quando os governantes são quase da nossa idade. O novo Primeiro-Ministro britânico tem apenas mais sete anos do que eu e o Ministro das Finanças apenas mais dois. Ou seja, o homem que vai tentar cortar seis mil milhões de libras de despesa pública já este ano poderia, num cenário não totalmente inconcebível, ter andado na escola comigo. Não somos nós que estamos a ficar muito velhos, mas os políticos a atingirem posições elevadas demasiado cedo, consequência de uma cultura que privilegia a juventude. Apesar de a mudança em si não ser positiva ou negativa, teria algum pudor em entregar os meus impostos a quem provavelmente participou em moches ao som dos The Clash ou dos Ramones há menos de duas décadas ou que de forma intuitiva esteja sempre à espera de que após quatro ou cinco músicas animadas comece a tocar um slow.
Comprei na Feira do Livro Uma Viagem Sentimental de Laurence Sterne (1713-1768), apenas por ter na contracapa este excerto:

Os ociosos que deixam o país natal vão para o estrangeiro por alguma razão ou razões que se podem derivar de uma destas causas gerais -

Enfermidade do corpo,

Imbecilidade do espírito, ou

Necessidade inevitável.

Será suficiente para o meu leitor, se é que ele próprio já se viu na qualidade de viajante, que ele possa, com o devido estudo e reflexão sobre o assunto, determinar a sua própria posição e categoria no catálogo.

Saber que posso restringir a razão do meu exílio a apenas três causas dá-me algum conforto e embora ainda tenha de ler o resto do livro para tentar determinar a causa geral do meu exílio, intuo já que tenha sido uma perfeita conjugação das duas últimas.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Inventário abreviado (e muito atrasado) de um fim-de-semana prolongado em Paris: uma viagem de Eurostar (ida e volta), dois crepes com nutella, uma sopa de cebola e queijo gratinado, dois passeios de barco, um exposição do Lucian Freud no Pompidou, duas brancas de neve, três viagens de carrossel, três pequenos-almoços completos na companhia de quatro bons amigos.

domingo, 9 de maio de 2010

Participei hoje na cerimónia de comemoração do Dia da Europa, na Abadia de Westminster. Em termos de missas, sou mais ou menos como o Obélix e a poção mágica dos gauleses, caí num caldeirão quando era mais novo e agora sinto necessidade de as manter ao mínimo. Mas o edifício e a coreografia da cerimónia não me deixaram indiferentes. Num espaço onde foram coroados muitos reis, houve leituras de epístolas em alemão, romeno e francês, um coro búlgaro, muitos salmos ingleses e crianças de diversas nacionalidades europeias. Depois ainda estive na Jerusalem Chamber, onde, segundo me disseram, morreu Henrique IV, que tinha projectos de viajar até à Terra Santa mas teve de contentar-se por cumprir o seu destino muito mais perto de casa. No final, regressei numa carruagem de metro quase vazia, de fato de gravata, a ouvir Sonic Youth (Kotton Krown): I'm wasted in time and I'm looking everywhere / I don't care where / Angels are dreaming of you.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Recebi há tempos pelo correio um livro com o título: Opening for White According to Kramnik. Como leitor de Borges, um título assim não me poderia deixar indiferente, independentemente do conteúdo do livro. É, como é óbvio, sobre xadrez e talvez aconselhe formas de se ultrapassar o dilema do jogador perante o jogo em branco. Como não sei mais do que a forma como cada peça se deve mover no tabuleiro, é também óbvio que o livro não é para mim. Em breve será entregue a quem sabe quem é o Kramnik e está mais interessado do que eu em conhecer a sua abertura com as brancas. Depois restará apenas na minha cabeça a frase Opening for white according to Kramnik, Opening for white according to Kramnik..., incompreensível e musical, a sugerir sacrifícios de peões e movimentos enviesados de cavalos.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Hoje acordei às 5h41 da manhã. Não porque estivesse com insónias ou porque tenha campos para lavrar, mas porque o D. tem acordado por volta dessa hora durante toda a semana. Recorrendo ao método científico e isolando variáveis, acabei por consultar um site meteorológico com a tabela do nascer do sol em Londres: 5h42 (segunda), 5h40 (terça), 5h38 (quarta), 5h37 (quinta). A coincidência é demasiada para ser considerada um acaso. Tendemos a esquecer-nos da nossa natureza biológica e de que os nossos antepassados viveram forçados ao ritmo dos elementos, das fases do Sol e da Lua. Durante milhares de anos a humanidade observou os astros para tentar conhecer o seu destino, profetizar a queda de impérios ou navegar por oceanos desconhecidos. Eu fico apenas a saber a que horas vou acordar amanhã. E, pela tabela, será às 5h35.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ofereceram-me finalmente o 2666 do Roberto Bolaño. É o mais próximo que um objecto pode estar de incorporar o ideal romano de mente sã em corpo são. O cérebro vai acompanhando as aventuras de Pelletier, Espinoza, Morini e Norton, enquanto os bíceps vão ficando mais definidos por terem de suportar o peso de um livro de mais de mil páginas. Pesei-o na balança de cozinha: 1,292 Kg. Se fosse farinha, dava para três ou quatro bolos-rei. Na parte em que fiquei hoje, alguns dos personagens encontram-se num café pequenino de uma heterodoxa galeria que se dedica à exposição de quadros, mas também à venda de livros usados, de roupa usada e de sapatos usados, lugar de encontro em Hyde Park Gate. A rua fica relativamente próxima da minha casa e já tinha pensado escrever sobre ela, mas por motivos diferentes, que descreverei noutra altura. Um destes dias passo por lá para ver se a galeria é também ficcional.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Eyjafjllajokull: apesar de parecer um erro de digitação, é o nome do vulcão que me está a dificultar uma viagem marcada a Portugal para um casamento. Em desespero, fui ao Google Maps em busca de alternativas ao transporte aéreo: 20 horas e 24 minutos de automóvel ou 7 dias e 14 horas a pé (o que parece incluir uma travessia a nado entre Portsmouth e Bilbao). Na impossibilidade de discutir com um vulcão, que grita neste momento muito mais alto do que eu, tenho de adoptar a atitude britânica deste senhor entrevistado pela BBC:

"I'm meant to be going to Lanzarote. We've travelled from Oban, leaving at 3am. Now we've decided we might as well just go home and do a bit of gardening."

domingo, 11 de abril de 2010

Viagem de estudo


Nenhum museu é feito para se ver numa tarde, especialmente o Britânico. Mesmo que estivesse vazio, o edifício, por si só, merecia ser visitado, pela feliz mistura de traços clássicos e contemporâneos. Depois de ver cinquenta múmias e três mil e quinhentos calhaus, já me apetecia encostar numa cariátide ou deitar-me num sarcófago, mas continuei a deambular pelas salas. Os britânicos sempre gostaram de trazer recordações das suas viagens de estudo pelo mundo e de trocar bens intangíveis, como o sistema representativo ou a arte de jogar cricket, por outros mais concretos, como esculturas e peças em bronze. Ainda tentei visitar a sala de leitura (agora remodelada), onde termina tragicamente o filme Blackmail, de Hithcock, mas estava encerrada. Regressei através de Covent Garden e do Soho e, já em casa, aproveitando que estou sozinho por uns dias, dediquei-me a uma actividade que se vai tornando muito rara: tomar um longo banho de imersão. Não fosse o eterno dilema de tentar, em vão, manter simultaneamente submersos os ombos e os joelhos, teria sido um bom final de fim-de-semana.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

15º à sombra

Apesar de ter tido defensores tão célebres quanto Montesquieu, a teoria de que o clima molda o carácter dos povos é, quanto muito, exagerada. Por vezes, no entanto, sou forçado a suspender o meu cepticismo. Os povos do Sul estão acostumados a proteger-se do calor. Lembro-me de na infância ver os agricultores, em Trás-os-Montes, irem para o campo com camisas de mangas compridas e casacos grossos, em pleno Verão, sob o lema de que «o que protege do frio, também protege do calor». Da mesma forma, os beduínos não usam manga curta para atravessarem o deserto. Mas aqui, mais a norte, basta que a temperatura suba acima dos quinze graus para que comecem a voar cachecóis, luvas, casacos e camisolas e os londrinos tentem encontrar um bocado de relva no meio da cidade para se poderem deitar a apanhar banhos de sol.

Todas as actividades que durante os meses anteriores eram realizadas entre paredes são trazidas para o espaço público: almoçar, ler, dormir uma sesta, etc. Nunca um alentejano, por exemplo, se lembraria de se sentar num banco na praça central da sua vila, a apanhar banhos de sol, nas horas de maior calor. Geralmente esperam pela «fresquinha». Claro que os britânicos estão fartos de «fresquinha» e começam logo a ocupar as superfícies com mais sol, como caracóis. Depois de bastantes meses aqui, começo a compreendê-los perfeitamente. Se tudo continuar assim, este fim-de-semana sacudo o pó da manta e mudo-me para o relvado na parte de trás da nossa casa.

terça-feira, 30 de março de 2010

You've got mail

No nosso prédio - como julgo que na generalidade do Reino Unido – o correio não é distribuído de forma individual. A correspondência é deixada, num maço, na caixa de correio do prédio e cada pessoa retira as cartas que lhe são dirigidas. A consequência não intencional deste método é ficarmos a conhecer os nomes de todos os vizinhos, assim como os seus gostos e personalidades.

Pode ficar a saber-se bastante sobre uma pessoa pelas revistas que assina, as cartas que recebe e o junk mail que lhe é endereçado. Ficamos a saber, por exemplo, que um vizinho aderiu a um ginásio, outro tem familiares na Austrália e um outro se interessa por ornitologia. A situação torna-nos também conscientes da necessidade de nos refrearmos na utilização do Royal Mail. Julgo que ninguém no prédio teria coragem de encomendar o catálogo de uma sex-shop ou de assinar a Penthouse.

Como só chegámos há relativamente pouco tempo, também só aos poucos vamos abandonando as nossas desconfianças. Como já referi antes, aderi a um serviço de dvds por correio. Noutra situação, teria sempre receio de que o filme fosse visto primeiro por todos os vizinhos e só depois colocado novamente na portaria. Mas isso nunca aconteceu. O envelope está sempre lá pousado, intacto à minha espera, embora sempre que pegue nele verifique se não tem uma anotação do género: «Gostei, mesmo não sendo um dos filmes mais interessantes do neo-realismo italiano. É pena ele morrer no final. Atenciosamente, 3.º G.»

quarta-feira, 24 de março de 2010

Quando Hamlet, Príncipe da Dinamarca, fica louco ou se finge de louco, é enviado para Inglaterra. A decisão, por si só, é já bastante reveladora. No entanto, é interessante ler também, na cena do cemitério, o diálogo entre Hamlet e um dos coveiros – que não sabe que está a falar com o Príncipe da Dinamarca –, sobre os motivos mais pormenorizados que justificaram o exílio:

Hamlet: Ay marry, why was he sent into England?
First clown: Why, because he was mad; he shall recover his wits there; or if he do not, it’s no great matter there.
Hamlet: Why?
First clown: ‘Twill not be seen in him there, there the men are as mad as he.

O facto de ter sido eu próprio a querer vir para Inglaterra apenas prova que os loucos têm momentos de lucidez, nos quais buscam a cura. Talvez volte recuperado ou nunca chegue a recuperar, mas entretanto parece que estou em boa companhia.

sábado, 20 de março de 2010

Hoje, pela segunda vez na vida, assisti a um filme em 3D. A primeira foi nos anos 80, quando fiquei a pé até mais tarde a ver O Monstro da Lagoa Negra na RTP. Eu e a minha irmã mais velha partilhámos o par de óculos de cartão que a minha mãe comprou na papelaria, mas não conseguímos ver absolutamente nada de extraordinário. Julgo que só tive um sentimento de anticlímax semelhante muitos anos mais tarde quando Portugal perdeu com a Grécia na final do Europeu. Mas a tecnologia (ao contrário da qualidade futebolística) melhorou bastante. Claro que fui apanhado de surpresa, porque não sabia que o Alice in Wonderland do Tim Burton era em 3D e que, por isso, teria de sentar-me numa sala de cinema ao lado de dezenas de outras pessoas de óculos escuros, como uma multidão de ressacados. Quanto ao filme, é uma espécie de Alice meets Senhor dos Anéis e Matrix. A Rainha de Copas cita Maquiavel: «É melhor ser-se temido do que amado», mas o final é bastante mais suave. Agora tenho de ir, estou muito atrasado, mesmo muito atrasado...

quarta-feira, 17 de março de 2010

É muito conveniente ter o Speaker’s Corner a quinze minutos do local de trabalho. Quando estamos mais aborrecidos podemos ir até lá insultar alguém. Mesmo não estando a ter um dia muito difícil, decidi ir experimentar na hora de almoço. Mas para lá chegar tive de contornar o Serpentine, o lago que atravessa Hyde Park. Estava um início de tarde muito agradável, com pessoas sentadas na relva e nos bancos, aves aquáticas a tentarem comer o almoço dos turistas e alguns barcos de recreio no meio da água. Quando cheguei ao outro lado estava demasiado bem disposto para querer dizer mal de alguma coisa. Também segui o conselho e não mergulhei da ponte.


domingo, 14 de março de 2010

O Gonçalo M. Tavares criou um bairro imaginário, de habitantes com com nomes de escritores e hábitos estranhos. Eu começo aos poucos a descobrir o meu. A cerca de trezentos metros do Sr. Mill viveu durante alguns anos o Sr. Pound. Como não foram contemporâneos, é difícil imaginá-los a encontrarem-se num café local e conversarem sobre filosofia ou poesia. Provavelmente discordariam sobre a maioria das coisas. A casa onde habitou Ezra Pound fica numa reentrância da Kensington Church Walk, uma via estreita por onde se pode escapar do movimento da rua central do bairro. Andando um pouco, chegamos ao pátio de uma igreja de estilo gótico (St. Mary Abbots), com lápides e plátanos espalhados de forma desordenada. O ruído dos automóveis quase não se ouve e sentimos que poderíamos estar numa pequena vila do interior. A ruela estende-se depois com uma sucessão de lojas minúsculas de ar antigo. Foi enquanto aqui vivia que Pound se tornou numa das principais figuras do modernismo, que mais tarde transportou consigo para Paris e Rapallo. Foi talvez também aqui que escreveu este poema:

The Garden


Like a skein of loose silk blown against a wall,
She walks by the railing of a path in Kensington Gardens,
And she is dying piece-meal
To a sort of emotional anæmia.

And round about there is a rabble
Of the filthy, sturdy, unkillable infants of the very poor.
They shall inherit the earth.

In her is the end of breeding.
Her boredom is exquisite and excessive.
She would like some one to speak to her,
And is almost afraid that I
Will commit that indiscretion.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Após um interregno de mais de vinte anos, passei um dia inteiro a brincar com carros de bombeiros, rebocadores, betoneiras e outros veículos de quatro rodas em miniatura. E o D., a quem os novos brinquedos pertencem, estava quase tão entusiamado quanto eu. Não sei muito bem de que forma as teorias da educação evoluiram desde Locke, mas bastou apenas um ano para transformar uma tábua rasa num miúdo. Curioso como todos os outros, sempre a tentar abrir portas, caixas e frascos, a lançar o caos sobre os livros das estantes mais baixas e a gatinhar pela casa com um carrinho numa mão. John Stuart Mill aprendeu Grego e Latim muito novo, eu prefiro que ele aprenda a enfiar berlindes em covinhas escavadas no chão.

terça-feira, 2 de março de 2010

Nunca fui partidário da teoria de que a natureza humana é imutável. Mas senti um arrepio na espinha ao ler as páginas iniciais do Satyricon de Petrónio. O livro foi escrito provavelmente no século I e no seu início Petrónio descreve como a juventude do seu tempo está perdida, tudo por culpa do sistema educativo e dos pais, que não exercem suficiente disciplina. Depois afirma que já não se faz arte (teatro, poesia e pintura) como antigamente (Sófocles, Eurípedes, Homero, etc). Ainda não acabei o livro e não ficarei muito surpreendido se, entre a descrição de uma ou outra orgia, venha a encontrar afrase: O que isto (Roma) precisava era de um Nero em cada esquina.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Este livro que tenho agora na mão tem uma dedicatória de 1998 e foi-me oferecido por dois amigos. Há muito que eles deixaram de namorar e vivem mesmo em países diferentes. O livro, esse, já mudou pelo menos três vezes de casa, sempre a entrar e sair de caixotes sem nunca ser lido. Achei que tinha chegado a altura certa para o retirar da estante. É de Bruce Chatwin e chama-se O que Faço eu Aqui. A frase foi aparentemente retirada de Rimbaud, que a terá utilizado, em francês, numa viagem pela Etiópia. Mas a frase original terminava com um ponto de interrogação, o que lhe dava a forma de lamento. O título de Chatwin é apenas declarativo, de quem não espera, ou sequer quer, uma resposta.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Num dia de tempo verdadeiramente londrino, refugiámo-nos no interior da Tate Modern. Em quatro ou cinco salas, concentram-se obras representativas do melhor que se fez na primeira metade do século XX. Depois, mais acima, avança-se para o período a que os críticos de arte dão o nome de «Isto até o meu filho de três anos fazia». Percorrer um museu como a Tate em duas ou três horas é como tentar ver um filme em fast forward: apanhamos o enredo geral, mas perdemos os pormenores mais interessantes dos diálogos e das expressões faciais dos actores. A única solução é fazer pausa nos quadros que nos captam mais a atenção e depois continuar a andar pelas salas sem remorsos. Hoje parei algum tempo em frente de Metamorfose de Narciso de Salvador Dalí, onde uma figura ajoelhada junto a um lago dorme ou esconde simplesmente o próprio rosto que se transforma. Narciso permaneceu imóvel em frente ao lago enquanto nós saímos para a chuva, atravessámos a Millenium Bridge e fomos engolidos por uma estação de metro.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Descobri que vivo na circunscrição eleitoral onde, em todo o Reino Unido, o Partido Conservador teve a maior vantagem nas últimas eleições. Apesar de saber que mais de metade das pessoas do bairro são tories, não lhes levo a mal e continuo a sorrir para os meus vizinhos como antes. O conhecimento desse facto apenas reforçou a minha determinação em manter sempre as conversas de ocasião nos limites rígidos da meteorologia. Agora, no entanto, sempre com medo que ao comentar «What a lovely weather today» a pessoa ao meu lado no autocarro responda «Yes, perfect for fox hunting.»

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A ascensão e a queda

O número e qualidade das revistas literárias publicadas no Reino Unido torna possível escrever-se (e, consequentemente, ler-se) sobre livros de todas as áreas. E com muita liberdade. Foi por isso sem surpresa que li, numa das publicações mais sérias e importantes, uma recensão ao livro Manhood: The Rise and Fall of the Penis, da qual transcrevo o primeiro parágrafo:

This was a stiff assignment: three hundred pages of information, lore, reflection and clinical data written up by a Dutch urologist in a quirky style that veers between flaccid exposition and penetrating analysis.

Aditamento

Em Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss escreve sobre uma tribo, os Nambikwara, cujos membros não usam nomes próprios, pelo menos em frente a estranhos. Lévi-Strauss conta que começou a conhecer o nome de alguns deles pelas crianças que, como brincadeira ou para se vingarem umas das outras, lhe vinham sussurrar segredos (nomes) junto às orelhas. Aos poucos, deixou de ser estrangeiro.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Recollections of a wild radish*

Li os principais romances de José Saramago, mas nunca folheei sequer os diários. Fui por isso surpreendido ao ler uma recensão da autobiografia da infância do escritor na Literary Review, que começava com a história do registo de nascimento. Aparentemente, o funcionário estava bêbado e acrescentou ao apelido (Sousa) a alcunha pela qual a família era conhecida (Saramago). O caso não deve ser único ou, até, o mais embaraçoso. No mesmo texto, que consegui encontrar na internet, Saramago fala da sorte de a sua família não ter por alcunha, como outras da Azinhaga do Ribatejo, Pichatada, Curroto e Caralhana. Acredito que nunca teria recebido o Nobel. Eu, que sou urbano-depressivo, mas tenho uma aldeia, onde nunca vivi e sempre passei os verões, tenho um problema idêntico. Lá, pelo menos para as pessoas mais velhas, o meu apelido é Carvalheira, por a casa de família ficar numa encruzilhada de carvalhos centenários, dos quais restam ainda dois. Como no Tabacaria, de Álvaro de Campos, qualquer dia desaparecem os carvalhos e depois a alcunha de família e a língua em que era dita. Até lá, seremos os carvalheiras. Na verdade, fora dos bilhetes de identidade, existem poucos sousas, silvas, rodrigues, barrosos, gonçalves, martins, alves, cunhas. Quase todos são conhecidos por um nome diferente, como um código secreto que se aprende ao crescer e é, por isso, impenetrável a estranhos.

*Título da recensão de Miranda France.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

The knights who say «Ni»

A experiência de estar numa sala de cinema escura, anónimo entre estranhos, é insubstituível. Mas por vezes temos de contentar-nos com prazeres menores e, por isso, inscrevi-me no Lovefilm. Não sei se existe em outros países, mas é um sistema de aluguer de filmes que combina a Internet e os correios de sua majestade. Pagamos uma quantia fixa por mês, escolhemos uma lista de filmes no site e os dvds chegam-nos por correio passado pouco tempo. Podemos levar o tempo que quisermos a vê-los e, depois, fechamos o envelope de resposta paga e colocamo-lo em qualquer marco do correio. Passados alguns dias, recebemos os filmes seguintes da nossa lista. Para além de tudo o mais, a vantagem é que tem sessenta e cinco mil filmes e séries para escolha. É possível encontrar filmes de todas as décadas e categorias. A nossa lista tem coisas como As Tears Go By (Wong Kar-Wai), Broken Embraces (Almodóvar), Revolutionary Road (Sam Mendes) e Paris Nous Appartient (Jacques Rivette). Ontem à noite vimos The Holy Grail, dos Monty Python. Já conhecia partes do filme, dividido em sketchs (como o que dá o título a este post), mas nunca o tinha visto do princípio ao fim. O único problema foi ter perdido algum tempo, no menu do dvd, a tentar retirar as legendas em sueco que aparecem no genérico inicial. Só ao fim de dez minutos percebi, com alguma vergonha, que fazem parte do filme original.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Fui conhecer a Foyles, cinco pisos de livros em Charing Cross, uma das ruas menos bonitas e mais interessantes da cidade. Saí da boca do metro, passei pelas filas de balões vermelhos suspensos do início da Chinatown e, depois, por um sapato de mulher gigante a anunciar o musical Priscilla, a Rainha do Deserto. A livraria fica mais ao fundo da rua. Antes ainda entrei numa Pizza Hut, para os livros não me cairem no estômago vazio. Com tudo isto, tive apenas vinte minutos da hora de almoço para percorrer as estantes do terceiro andar. Andei por lá como um felino entre erva alta, à espera que as gazelas se aproximassem do lago para beber. Ao fim desse tempo, tive de parar de percorrer as lombadas e endireitei o pescoço, já com dois livros debaixo do braço, que comecei logo a digerir numa carruagem de metro.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Para a R., o A. e a I.

Por força das circunstâncias, a comunidade dos expatriados está mais predisposta a conhecer pessoas novas. Foi por isso que nos encontrámos, no passado fim-de-semana, sentados à mesa a almoçar e a conversar alegremente com uma portuguesa, um escocês, dois ou três búlgaros, uma austríaca e um inglês («and very proud of it.»), nenhum dos quais conhecíamos anteriormente. A única vaga ligação era uma amiga de uma amiga. Agora, espero, também nossa amiga. As crianças mais velhas subiam e desciam os degraus, saltavam em cima das almofadas e, as mais novas, simplesmente dormiam ou choravam no colo dos pais. Divertimo-nos. A nossa situação actual faz lembrar os tempos da faculdade, quando os estudantes de fora de Lisboa, com a liberdade de não possuirem ligações familiares a que voltar ao fim da noite, se reuniam nos grupos mais estranhos e interessantes. Nós esforçávamo-nos por acompanhar o ritmo e as actividades, mas inevitavelmente tínhamos de correr para apanhar o último comboio. Agora somos nós que vemos o comboio partir, ao longe, e continuamos a conversar.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Literatura comparada

Uma amiga, sempre com ideias boas e generosas, pediu-nos livros para iniciar uma biblioteca para presos que, nas actuais funções, tem de visitar e confortar. Numa primeira passagem pelas minhas estantes apercebi-me de que não ia ser uma tarefa fácil. Escolher literatura para pessoas com todo o tempo do mundo para se reverem nas personagens das histórias que lêem é uma responsabilidade demasiado grande, mesmo a um continente de distância. Comecei por eliminar os mais óbvios, como Crime e Castigo (Dostoievski), Expiação (Ian McEwan), O que Faço Eu Aqui (Bruce Chatwin), A Eternidade Não é De Mais (François Cheng), Os Inimigos do Sistema (Brian Aldiss), O Assalto (Harry Mulisch), O Livro da Confissão (John Banville) ou Sem Destino (Imre Kertész). Pus de lado também os que, pela espessura e peso, pudessem servir de arma, tornando-me cúmplice involuntário de um crime: A Montanha Mágica (Thomas Mann), Ulisses (James Joyce), D. Quixote (Cervantes), Metamorfoses (Ovídio) ou O Jogo do Mundo (Julio Cortázar). Depois os que, pela gramagem leve das folhas, pudessem acabar, de forma inglória, em centenas de mortalhas, como a edição da Caminho das Obras de Carlos de Oliveira ou a Bíblia. Isto tudo, J., para te tentar explicar porque é que, com toda esta análise de risco, ainda não te chegou aí desse lado do Oceano um único volume.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Too hot to trot

Para me abrigar do frio, entrei numa das casas de apostas que existem espalhadas pela cidade de Londres. São sítios curiosos, de paredes forradas com painéis semelhantes aos antigos horários de comboios das estações da CP, nos quais se encontra escrito, num código apenas compreensível para os iniciados, nomes de cães ou cavalos, nomes de pistas e probabilidades de vitória. Noutra parede, em cerca de dez plasmas diferentes, passam imagens de corridas de cavalos, cães, automóveis e jogos de futebol. Pode fazer-se apostas sobre quase tudo, desde a equipa que vai vencer o mundial até, creio, o partido que vai vencer as próximas eleições. Estavam lá apenas outras três pessoas: uma dona-de-casa de meia idade, que entrou e saiu depois de apostar qualquer coisa no balcão, um rapaz interessado em ver um dos jogos de futebol e um homem que acompanhava corridas de galgos e, no final, rasgava invariavelmente os bilhetes das apostas perdidas. Percorri as longas listas, por curiosidade. Numa das pistas, num qualquer lugar distante do país, iam correr lado a lado os cavalos Too Hot to Trot, Baar Med, Fettucini e Dog Violet. Ainda me senti tentado a apostar no primeiro, mas não saberia como e, por isso, enrolei o cachecol e saí para a rua sem saber quem venceu a corrida.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


Hora de almoço passada em Green Park, a fotografar e a ouvir Blonde Redhead.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

The lazy sunbather

A BBC Radio 4 tem um programa chamado Desert Island Discs, em que os entrevistados são convidados a explicar quais as músicas que carregariam debaixo do braço em caso de naufrágio. O Morrisey foi a um dos últimos programas. Não consegui ouvir a entrevista, mas retirei a lista do site da BBC. O antigo vocalista dos The Smiths levaria para uma ilha deserta músicas dos Ramones, The Velvet Underground e Iggy & the Stooges, bandas que costumam ser ouvidas em ambientes mais escuros e urbanos, como salas de concerto ou quartos de adolescente. Duas das outras escolhas são mais óbvias para quem está sozinho numa ilha: Come and Stay With Me de Marianne Faithfull e Sea Diver de Mott the Hoople. O próprio Morrisey tem uma música com o título The Lazy Sunbathers, sobre pessoas que não se importam que o mundo esteja a explodir à sua volta enquanto apanham banhos de sol. Um grupo a que não me importava de juntar, quando a temperatura ronda os 0º. Por azar, naufraguei numa ilha pouco deserta e com pouco sol. Mas felizmente com boa música.

(Obrigado, Vítor. Estou neste momento a descarregar os 4Gb de música que trouxe de tua casa.)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os nomes familiares perdem significado, especialmente se designarem lugares ou ruas. De vez em quando, podemos ser surpreendidos por uma designação que envolva, por exemplo, as freguesias dos Prazeres ou do Rego, mas em geral andamos por Lisboa sem perder muito tempo a olhar para as placas. Quando mudamos para uma nova cidade, é diferente. É muito fácil sermos surpreendidos com nomes de ruas que os locais já interiorizaram. Perto de nossa casa há, por exemplo, uma pequena rua com nome de álbum pop: Strangways Terrace. Depois, se andarmos bastante a pé pela cidade, podemos encontrar lugares como Crutched Friars (Frades com Muletas), Petty France (França Mesquinha), Pudding Lane, Cock Lane, Gutter Lane, Flask Walk, Half Moon Crescent, Inner Circle, Adam and Eve Mews, Nevern Square, Lupus Street, Prima Road, Amen Corner, World's End ou Unicorn Passage. A literatura não teria conseguido conceber um mapa mais estranho, onde é muito fácil perdermo-nos, especialmente se nos encontrarmos em Bliss Crescent (Êxtase Crescente)*.

*As traduções entre parêntesis são, obviamente, demasiado literais e erradas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Abaixo de zero

Não chove nem neva, mas o termómetro hesita entre o positivo e o negativo. Toda a humidade se transformou numa poeira fina de gelo que cobre relvados, gradeamentos, automóveis, ruas. Uma película semelhante à que cobre uma caixa de gelado assim que a retiramos do congelador. Parece que estamos todos a viver no interior de um grande frigorífico e, como o processo evolutivo não nos preparou para a hibernação, tenho de continuar a fazer as actividades diárias normais: sair de casa, esperar pelos transportes públicos numa paragem gelada, ler umas páginas do livro do Joan Margarit – que comprei nas férias – na parte de cima do autocarro, andar até ao trabalho em passo acelerado antes que as cartilagens das orelhas congelem e fiquem quebradiças. Assim que as mãos recuperarem a sensibilidade vou dando mais notícias. Bom Ano Novo.